Acerca da Felicidade: o
tudo e o nada
Como posso ser feliz?
Se não me identifico
pelo que sou,
mas pelo que tenho?
E se nada tenho,
vivo buscando ter,
e esqueço-me de ser.
E o que tenho,
é como nada ter,
pois nada sou,
pelo que tenho.
Nada! não quero ser,
então, preciso ter,
que tudo é,
para quem nada é.
O nada vira tudo
e o tudo é o nada,
que me cega para o tudo
e só me faz ver o nada.
Minha vida é um nada,
que torna isso tudo
insuportável.
Jogo-me no eterno nada?
Ou busco outro nada,
acreditando ser ele
o tudo?
Como acordar para o tudo?
E esquecer o nada?
Se sou um nada?
Que quer tudo?
Nada!
Tudo!
Tudo!
Nada!
Torno para sempre
um nada?
Ou supero
isso tudo?
Como posso
não querer nada,
desse tudo?
E buscar o tudo,
se só vejo
o nada?
Talvez, o tudo,
esteja onde,
eu acreditava
ser o nada.
Então,
serei tudo e
não precisarei
de nada.
(Wilson Horvath)
Este texto serve como
pano de fundo ao seguinte, em que apresentaremos propostas de Ética e Política de Civilização. Nele, faremos uma discussão da conjuntura
complexa, ou seja, procuraremos tecer os vários fios antropossociais e
político-econômicos, que compõem a sociedade ocidental, nas duas primeiras
décadas do terceiro milênio à luz do Pensamento Complexo. Nosso objetivo é
entender os mecanismos de funcionamento da dialogia existente entre o sujeito,
a cultura moderna e a sociedade. Procuraremos, ainda, discutir os porquês de
Edgar Morin apresentar as propostas de Ética e Política de Civilização. Quais
são os paradigmas com os quais ele está dialogando e enfrentando? Em que
contexto mundial surgem tais propostas?
A estrutura dialógica
existente entre os sujeitos e a sociedade contemporânea estabelece um círculo
vicioso entre produção e consumo. Esse círculo é responsável por problemas que
estão pondo a humanidade e parte das formas de vida no planeta em risco de extinção.
A estrutura dialógica segue a reflexão apresentada na epígrafe deste capítulo,
a humanidade se lança em uma busca frenética e insaciável pelo Ter, sem
considerar ou relativizar as consequências dessa ação.
A dialogia
estabelecida não é determinista, nem natural; ao contrário, é passível de ser
rompida, pois ela é contextual. E há o princípio de desordem que caminha
paralelamente ao de ordem. Mas, mesmo sendo contextual, não é fácil ser
rompida, pois, embora não seja determinista, ela é condicionante.
A maneira como a
humanidade está vivendo é fruto de um jogo de ideias, que compõem a sua forma
atual de organização e a projeta para o futuro. Nosso objetivo, aqui, é
entender como essa estrutura dialógica age tanto na mentalidade do sujeito como
na sociedade. Segundo Morin: “O Método trata da vida, do espírito, das
ideologias, do imaginário, da luta entre escolas diferentes de pensamento e da
necessidade de tolerância. Precisamos aprender a contextualizar e a globalizar
os conhecimentos" (2008, p. 09).
Pretendemos fazer
essa contextualização a fim de, no próximo capítulo, buscarmos as brechas para
a construção de uma nova cultura e de um novo ser humano, ou seja, uma cultura
de Terra-Pátria e um ser humano que se sente membro, filho dela e trabalhe em prol
de Terra-Pátria. Mas para tal, precisamos conhecer as determinações que impõem
o atual modelo. Segundo Morin: “há multiplicação das brechas e rupturas no
interior das determinações culturais, possibilidade de ligar a reflexão com o
confronto, possibilidade de expressão de uma idéia, mesmo desviante” (Ibidem,
p. 23).
Este texto traz as
seguintes reflexões: Preâmbulo, em que apresentamos os atuais problemas;
Noosfera, o mundo das coisas do espírito e como age na constituição do ser
humano; Noosfera moderna e o fetiche de Eros trazem uma
reflexão sobre algumas ideias presentes na cultura contemporânea, bem como o
fetiche da força vital; a crise da esperança – o fim do socialismo expõe a
desesperança gerada depois do fim do socialismo; pensamento moderno, o complexo
do Rei Midas, expõe a utopia do pensamento moderno, suas ilusões e
consequências; o destronamento do deus-moral judaico-cristão explicita a
multiplicidade de ideias-forças, surgidas com o advento do pensamento moderno;
fragmentação do saber expõe as causas da fragmentação do conhecimento e suas
consequências para o pensamento ético; “onde cresce o perigo, cresce também o
que salva” procura uma saída para o fetiche de Eros a partir
de sua própria estrutura dialógica entre Thánatos e Eros, lançando
as bases para a construção dos conceitos de Política de Civilização e Ética.
1 Preâmbulo
O primeiro tocou a trombeta: granizo e fogo, em
mistura com sangue, caíram sobre a terra; a terça parte da terra ardeu, um
terço das árvores ardeu e toda erva verde ardeu. (BÍBLIA, 1995, p. 1522).
Edgar Morin, ao analisar a conjuntura atual,
afirma que nós estamos vivendo um momento decisivo da história da humanidade,
que é, segundo o filósofo: “última oportunidade ou desgraça última para a
humanidade” (1997, p. 117). A chamada do autor nos convida a refletir sobre os
atuais problemas que assolam a humanidade, neste início do terceiro milênio. Os
problemas são de ordem global, ou seja, eles não são oriundos de um local
particular e isolado, mas brotam de todos os cantos do planeta[1], e
suas consequências atingem toda a humanidade, sem exceção, incluindo não só os
que são responsáveis diretos por eles, mas também os que não são
culpabilizados. Destacamos, a seguir, alguns desses problemas, que ameaçam a
continuidade da vida humana.
A utilização da energia nuclear revela a sua
periculosidade, na ação bélica, como o ocorrido nos bombardeios das cidades de
Hiroshima e Nagasaki, em 1945; nas ameaças de que países como Coréia do Norte,
Índia, Irã, Paquistão repitam a barbárie da Segunda Guerra Mundial; no perigo
de que grupos extremistas e terroristas tenham acesso a esse tipo de armamento.
E, além da ameaça da utilização militar dessa energia, ela também se mostra
perigosa nos acidentes ocorridos em usinas de energia nuclear, tais como o de Chernobyl,
em 1986, e o de Fukushima, em 2011, entre outros. Esses acidentes nos revelam
que não há formas seguras na utilização desse tipo de energia.
Encontramos também problemas oriundos de
outras formas de geração de energia. O petróleo, além de ser um dos grandes
responsáveis pelas atuais guerras, também apresenta acidentes de grande impacto
ambiental. Destacamos o naufrágio do superpetroleiro Exxon Valdez, em 1989, que liberou cerca de 41 milhões de litros de
petróleo no oceano. E o vazamento de petróleo, por mais de três meses, ocorrido
após a explosão de uma plataforma norte-americana, que estava sob concessão da
empresa petroleira British Petróleo
(BP), no Golfo do México, em 2010. Esse acidente superou o ocorrido com o Exxon Valdez em até 112 vezes, em
relação ao nível de petróleo despejado na natureza.
A energia hidrelétrica não fica atrás em
relação ao impacto ambiental. A construção de uma usina hidrelétrica demanda a
extinção de várias espécies da fauna e flora, a expulsão de moradores,
atingidos por conta da construção de barragens. Um exemplo desse fato se
relaciona com as polêmicas em torno do projeto de construção da usina de Belo
Monte, às margens do rio Xingu. O governo brasileiro se mostrou irredutível no
desejo de construção da usina, mesmo diante dos pedidos oficiais da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos
(OEA), em 05 de abril de 2011, e do Ministério Publico Federal do Pará, em 27
de janeiro de 2011, como também de grupos indígenas, organizações
ambientalistas e de proteção aos direitos humanos.
A corrida frenética para a produção enérgica
se dá em virtude da necessidade de produzir energia para o processo de transformação
da natureza, nos moldes do pensamento moderno, que a humanidade realiza desde a
Revolução Industrial, em meados do século XVIII.
O pensamento moderno dessacralizou a natureza,
que deixou de ser nossa terra-mátria, nossa Pacha
Mama para se tornar a nossa serva, de onde retiramos o lucro desejado. Nas
palavras de Francis Bacon (1561 – 1626), filósofo precursor do pensamento
moderno: “a natureza tem que ser acossada em seus descaminhos, obrigada a
servir e escravizada, deve ser reduzida à obediência e o objetivo do cientista
é extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos” (apud CAPRA, 1982, p. 52).
Essa ideia de Bacon se tornou dogma nos anos
subsequentes. O ser humano torturou e escravizou a natureza; visando o lucro,
ele produziu a ciência moderna, que desenvolveu técnicas de extração e domínio
dos recursos naturais. A ciência moderna, segundo Morin: “[...] exclui todo
juízo de valor e todo retorno à consciência do cientista; a técnica é puramente
instrumental; o lucro invade todos os campos, inclusive os seres humanos e os
seus genes” (2007, p.165).
A humanidade sofre, hoje, os efeitos do
processo de transformação da natureza, nos moldes industriais. Nós assistimos a
uma verdadeira “rebelião” da natureza contra a forma como tem sido tratada nos
últimos séculos, que se manifesta no aquecimento global e suas consequências
catastróficas; no aumento no nível de precipitação (chuvas e nevascas); no
avanço do nível da água dos oceanos, o que, em breve, poderá fazer com que
países inteiros desapareçam como, por exemplo, os Países-Baixos europeus e as
ilhas Maldivas; na desertificação de regiões, antes tropicais; no crescimento
da ocorrência de furacões, tufões e ciclones etc.
O processo de industrialização, além das
consequências advindas do aquecimento global, polui os rios, os mares, a atmosfera,
as paisagens naturais. Animais e plantas estão morrendo e algumas espécies são
extintas. O lixo industrial é cada vez mais difícil de ser eliminado e tem aumentado
cotidianamente. Segundo Morin:
Assim,
fomos levados a ignorar os nevoeiros do desenvolvimento industrial. Ignoramos,
por exemplo, que os dejetos dos principais produtos do progresso poderiam
multiplicar-se e transformar-se em seus principais produtos, sempre mais
dificilmente elimináveis, ao passo que seus principais e benéficos produtos
poderiam reduzir-se, transformando-se em subprodutos; e, tudo isso, não somente
na esfera dos efeitos exteriores do desenvolvimento industrial (poluição,
sujeiras, degradações ecológicas), mas no interior das vidas cotidianas
(vantagens libertadoras da vida urbana e dos bens disponíveis, sempre mais
compensados pelas mutilações da existência especializada, pela perda das
solidariedades, pela automação dos indivíduos, pela submissão de corpos e
espíritos aos ritmos cronometrados pelas máquinas) (2010, p. 30).
O processo de industrialização não atinge
apenas a natureza, como também o próprio ser humano, que faz parte da natureza
pela sua constituição biogenética, mas separado dela por meio de sua cultura. A
industrialização, produto da ação humana em um processo recursivo, forma o nomos cultural de um novo humano. A
cultura fabril condiciona o humano, sua vida passa a ser ditada pela lógica
inerente à máquina. O ser humano passa a ser visto como mera peça viva de
produção. E ele, assim, se define; ele reduz a totalidade de seu ser e sua identidade
é dada pela sua profissão, ou seja, pelo que ele produz.
Os grandes centros industriais se tornaram
cidades-dormitórios, onde as pessoas vivem isoladas umas das outras; os antigos
laços de solidariedade se tornam raridade; a violência está espalhada na
sociedade. Ela se manifesta no seio familiar, nas escolas, nas ruas, no
trânsito, nas guerrilhas urbanas entre facções, entre policiais e criminosos.
O processo de morte e destruição, que a
humanidade vem realizando, nos últimos séculos, reflete diretamente na vida
particular das pessoas. Muitas estão vivendo uma vida sem sentido,
entregando-se às drogas ilícitas ou precisando de drogas lícitas para dormir,
para ficar acordadas, para se relacionar com os outros, para fazer sexo.
Segundo Morin:
Enfim, a morte ganhou espaço em nossas almas.
As forças autodestrutivas, latentes em cada um de nós, foram particularmente
ativadas, sob o efeito de drogas pesadas como a heroína, por toda parte onde se
multiplica e cresce a solidão e a angústia. (2000, p. 71).
Podemos perceber esse desespero e vazio que as
pessoas estão vivendo no aumento do número de suicídio e de hospitais
psiquiátricos. Segundo Morin: “De 1962 a 1997 multiplicou por três o número de
suicídios e hospitais psiquiátricos” (1997, p. 140). A atual forma de
organização da sociedade impede ou, ao menos, dificulta a realização das
pessoas. As pessoas, vivendo sozinhas, sem um sentido para a sua vida, vivem
desesperadas, estressadas, buscando a todo o custo encontrar a felicidade.
Talvez os locais, onde elas a procuram não sejam os locais corretos e talvez
aquilo que elas acreditam ser a felicidade também não o seja.
As pessoas são movidas pela cultura moderna na
qual estão inseridas; ao buscar as benesses ofertadas por ela, já que essas
benesses se tornam sinônimo de felicidade, a cultura é, então, reforçada pelo
desejo de felicidade das pessoas, que por sua vez, exigem mais esforço das
pessoas. Para Morin:
A cultura de massa delineia uma figura
particular e complexa da felicidade: projetiva e identificativa
simultaneamente. A felicidade é mito, isto é, projeção imaginária de arquétipos
de felicidade, mas ao mesmo tempo idéia-força, busca vivida por milhões de
adeptos. Esses dois aspectos estão, em parte, radicalmente dissociados, em
parte, radicalmente associados. (1975, p. 110).
A cultura moderna, a sociedade e o sujeito são
movidos por uma ideia-força de felicidade. Para compreendermos a forma como se
dá esse movimento, se faz necessário compreender o impacto que têm as ideias
para o ser humano e para a sociedade e o que são para o ser humano essas ideias
que atuam dentro da ecologia das ideias.
O ser humano é simultaneamente 100% biológico
e 100% cultural, ou seja, a constituição do nosso ser é formada pela dialogia
entre natureza e cultura, e ambas são distintas e complementares. Essa dialogia
proporciona uma mutação em nossa natureza humana, a partir da relação entre a
nossa natureza orgânica e a cultura. A cultura surge de nossas capacidades
mentais, mas nós só as temos devido à cultura. Segundo Geertz: “Assim, a
hominização biológica foi necessária para a elaboração da cultura, mas a
emergência da cultura foi necessária para a continuação da hominização até o neandertal e o sapiens” (apud MORIN,
2005b, p. 33).
O ser humano não é um animal, no sentido
exclusivamente biológico, nem um ente espiritual criado pela cultura, mas é
formado pela união hipostática de sua estrutura biofísica com sua estrutura
cultural. Logo, ele nunca deixará de ser um animal nem de ser cultural. Porém
ele não se reduz a nenhuma dessas estruturas. O humano é animal cultural, Homo Culturalis. Ele é gerador da
cultura que o gera. O que torna o humano sapiens
é a cultura, que só existe por ele ser sapiens.
A mitologia grega traz essa relação dialógica
na narrativa da criação do ser humano, através da história dos irmãos titãs
Prometeu e Epimeteu[2].
Nessa narrativa, Prometeu fez o homem a partir de uma mistura de barro e água,
e o fez à semelhança dos deuses. Epimeteu ficou encarregado de distribuir os
dons necessários para a sobrevivência de cada espécie de animal, como força,
velocidade, resistência, asas, garras etc. No momento em que Epimeteu daria um
dom para o homem, ele percebe que não havia mais dons, pois os havia dado aos
outros animais. E relata o fato a Prometeu.
Prometeu, com a ajuda de Atena (Palas Atena, deusa da sabedoria, da
estratégia bélica, da civilização, das artes, da justiça), rouba o fogo sagrado
dos deuses e o dá ao homem. O fogo é personificado pelo deus Hefesto que, além
de ser o deus do fogo, também é o deus dos vulcões, local onde se localizam as suas
forjas, da técnica[3], da
metalurgia. Hefesto é o ferreiro divino, responsável pela construção dos raios
de Zeus, o tridente de Poseidon, as flechas de Apolo.
O homem, diferente dos outros animais, somente
se tornou homem, com a ajuda da sabedoria de Atena e com o fogo divino, como
presente. Logo, o homem é biologicamente o mais fraco dos seres vivos por não
ter dons orgânicos que garantiriam a sua sobrevivência; porém com o uso do
fogo, que representa a técnica dos deuses, o homem pode aquecer-se do frio, construir
armas a fim de subjugar os animais e ferramentas para cultivar a terra. Isso
lhe permitiu tornar-se o mais forte dos seres.
A humanidade criou os deuses e os deuses
criaram a humanidade, ambos são criadores e criaturas; não haveria humanidade
sem os deuses, nem deuses sem a humanidade. Para Morin:
Produto de nossa alma e mente, a noosfera está
em nós e nós estamos na noosfera. Os mitos tomaram forma, consistência e
realidade com base nas fantasias formadas por nossos sonhos e nossa imaginação.
As idéias tomaram forma, consistência e realidade com base nos símbolos e nos
pensamentos de nossa inteligência. Mitos e Idéias voltaram-se sobre nós,
invadiram-nos, deram-nos emoção, amor, raiva, êxtase, fúria. Os humanos
possuídos são capazes de morrer ou de matar por um deus, por uma idéia. No
alvorecer do terceiro milênio, como os daimons
dos gregos e, por vezes, como os demônios do Evangelho, nossos demônios
“idealizados” arrastam-nos, submergem nossa consciência, tornam-nos
inconscientes, ao mesmo tempo em que nos dão a ilusão de ser (2000, p. 29).
O ser humano por ser, ao mesmo tempo, natureza
e cultura, necessita de dois mundos – duas esferas – para revelar a sua
humanidade. A primeira é a Biosfera, palavra formada a partir da junção de dois
vocábulos gregos: βίος (bíos, que
significa: vida) e σφαίρα (sphaira,
que quer dizer: esfera), logo Biosfera é esfera da vida, o ecossistema de onde
o ser humano retira os alimentos para sobreviver. Mas, simultaneamente, ele
necessita de outra esfera para ser humano, a Noosfera, também formada pela
junção de dois vocábulos gregos νοῦς (nous, que quer dizer:
mente, inteligência, espírito) e σφαίρα. (sphaira,
que quer dizer: esfera). Logo, Noosfera é o mundo das ideias[4], dos
espíritos. Segundo Morin: “Todas as sociedades humanas engendram uma noosfera,
esfera das coisas do espírito, saberes, crenças, mitos, lendas, idéias, onde os
seres nascidos do espírito, gênios, deuses, idéias-forças, ganham vida a partir
da crença e da fé” (2005b, p. 44).
Os seres da noosfera, deuses, gênios,
ideias-força, embora criados pela mente humana, transcendem-na e ganham
autonomia em relação ao humano que os criou e voltam em círculo recursivo, a
fim de organizar a coletividade e o indivíduo. Há uma relação direta entre os
humanos e os seres da Noosfera. Eles podem possuir o ser humano, em rituais religiosos,
como a umbanda[5],
espiritismo[6],
cristianismo pentecostal[7], em
que a entidade da noosfera incorpora em um fiel e se manifesta, com expressões
faciais e corporais próprias da entidade, diferentes das do fiel e comunica-se,
a partir da fala do sujeito possuído; fala essa que muda da tonalidade e
vocabulário ao idioma. Os seres da noosfera comunicam com os humanos e estes
narram seus diálogos e suas visões nos livros sagrados, nas pregações. Os seres
da noosfera também se dão como alimento a fim de reforçar a fé e a conduta dos
fiéis, conforme a eucaristia católica, em que o pão e o vinho se tornam o corpo
e sangue de Jesus. De acordo com Morin:
Um dos traços importantes do meu trabalho foi
deixar de subestimar os aspectos imaginário e mitológico do ser humano. Algo
que me tinha deveras impressionado quando assisti a uma cerimônia de Candomblé
no Brasil, e da qual participei, foi constatar que, num momento determinado, os
participantes, os crentes, invocam os espíritos ou deuses tais como Iemanjá;
num dado momento, um dos espíritos encarna num dos participantes e fala através
deste. Além disso, é possível a presença de vários espíritos. O que significa
tudo isto? Significa que os deuses têm uma existência real; essa existência
é-lhes conferida pela comunidade dos crentes, pela fé, pelo rito. Mas uma vez
que o deus existe, é capaz de nos possuir, e é essa a relação particular que
nutrimos com os "deuses", ou com o nosso "Deus", ou as com
nossas idéias (in: MARTINS; SILVA, 2003, p. 19).
Os homens sacrificam a sua própria vida, matam
e guerreiam em nome dos deuses. E na modernidade, eles também o fazem em nome
de ideias, que, por sua vez, adquiriram as mesmas forças dos deuses de outrora.
Assim, as ideias ou os deuses dominam o nosso modo de pensar e agir, de maneira
imperceptível à razão.
O ser humano apreende o real por meio da
noosfera. Ela é o meio condutor do espírito humano, que nos põe em comunicação
com o mundo, com os outros e com os fenômenos. Assim, nós vivemos um paradoxo
em relação à noosfera, pois é por meio dela que apreendemos o mundo, mas, ao
mesmo tempo, ela nos cega para o mundo. O que nós entendemos por real não é o
real propriamente dito, mas uma cópia do real realizado na noosfera, que
infelizmente nos impossibilita de saber se aquilo que acreditamos ser o real
está correto ou não. Segundo Morin: “A noosfera é uma duplicação do real que
recobre o real e parece se confundir com ele” (Ibidem, p. 44).
O nosso modo de pensar e entender o mundo se
dá na noosfera. Nela estão presentes todos os elementos de nossa cultura.
Portanto, não há conhecimento puro, independente da abordagem utilizada em
relação ao objeto de estudo, seja ele filosófico, religioso, poético ou científico.
Toda a forma de conhecimento é cultural, ou seja, é uma recriação simbólica do
real. Segundo Morin:
Por seu lado, a hipercomplexa maquinaria
sociocultural comporta não só um núcleo organizacional profundo (paradigmático)
que comanda/controla o uso da lógica, a articulação dos conceitos, a ordem dos
discursos, mas também modelos, esquemas, princípios estratégicos, regras
estratégicas, preconstruções intelectuais, estruturações doutrinárias. Enfim, e,
sobretudo, as cultura modernas justapõem, alternam, opõem, complementam uma
enorme diversidade de princípios, regras, métodos de conhecimento
(racionalistas, empiristas, místicos, poéticos, religiosos etc.) (2008, p. 22).
A compreensão da noosfera e do modo como ela
autorregula a nossa maneira de pensar e de nos comportar, seja no âmbito individual,
seja no coletivo vai de encontro à pretensa objetividade do pensamento moderno.
Não só a religião pode ser o ópio do povo, conforme pregara Marx[8], mas
toda a forma de pensamento humano pode nos cegar e nos embriagar. Entretanto, é
somente a partir da noosfera, do mundo simbólico, que nós podemos reconstruir
nossa vida e traçar novos caminhos para a humanidade. Segundo Morin:
Entretanto, são as idéias que nos permitem
conceber as carências e os perigos da idéia. Daí resulta este paradoxo
incontornável: devemos manter uma luta
crucial contra as idéias, mas somente podemos fazê-lo com a ajuda de idéias.
Não nos devemos esquecer jamais de manter nossas idéias em seu papel mediador e
impedir que se identifiquem com o real. Devemos reconhecer como dignas de fé
apenas as idéias que comportem a idéia de que o real resiste à idéia. Esta é
uma tarefa indispensável na luta contra a ilusão. (2000, p. 30).
A noosfera atual é marcada pelo desejo de
consumo. O ser humano é auto-eco-organizado pelo consumismo. Assim, o seu Ser
se estrutura dentro dessa cultura, o seu modo de pensar, agir, sentir. O
consumismo, como já dissemos, é sinônimo de felicidade. E é essa a ideia-força,
que atualmente, no nível da noosfera, desempenha a força que os deuses tinham
outrora. Segundo Morin:
A felicidade moderna é partilhada pela
alternativa entre a prioridade dos valores afetivos e a prioridade dos valores
materiais, a prioridade do ser e a prioridade do ter, e ao mesmo tempo faz
força para superá-la, para conciliar o ser e o ter. A concepção da felicidade,
que é da cultura de massa, não pode ser reduzida ao hedonismo do bem-estar,
pois, pelo contrário, leva alimentos para as grandes fomes da alma, mas pode
ser considerada consumidora, no sentido mais amplo do termo, isto é, que incita
não só a consumir os produtos, mas a consumir a própria vida (1986, p. 127).
A humanidade, de modo geral, vive um sono
profundo a tal ponto de não conseguir perceber os problemas que ameaçam a vida
humana, sejam os que já estão em curso, sejam os iminentes. Nós, em um círculo
recursivo, aos moldes modernos, sugamos, de forma predatória, todos os recursos
naturais. Essa ação se dá pautada na razão instrumental que, conforme dissemos,
condiciona o ser humano à lógica da máquina; assim, o processo de tortura ao
qual submetemos a natureza, a fim de retirar dela recursos, também tortura o
ser humano torturante. Nós estabelecemos essa relação com a natureza a fim de
produzir bens de consumo, pois há uma grande demanda da sociedade por consumo.
Os bens de consumo se tornaram, em nosso imaginário, sinônimos de felicidade.
O desejo por consumo, a ânsia insaciável pelo
Ter, movimenta a produção e obriga a criação de técnicas cada vez mais
sofisticadas de produção. E à medida que produz mais e cria novos produtos,
também aumenta o desejo por tê-los. Esse círculo vicioso de produção-consumo
coloniza nossa razão e emoção e impede que percebamos suas consequências.
Segundo Morin:
O dinheiro, sempre insaciável, se dirige ao Eros, sempre subnutrido, para estimular
o desejo, o prazer e o gozo, chamados e entregues pelos produtos lançados no
mercado. Em sua expansão "vertical", o capitalismo, depois de haver
anexado o reino dos sonhos, se esforça para domesticar o Eros. Ele mergulha nas profundezas do onirismo e da libido.
Reciprocamente, o Eros entra
triunfalmente no circuito econômico, e, dotado de poder industrial, desaba
sobre a civilização ocidental (1990, p. 120).
O Eros não
possui limites e não enxerga nada além da concretização de seu impulso. O Eros tem o poder de subordinar e cegar a
razão a fim de que essa o auxilie na concretização de seu desejo. Porém, ele
foi, ao longo da história humana, cerceado e reprimido pela razão. O Eros, porém, sempre volta à tona e,
infelizmente, algumas vezes, ele volta de forma violenta, como reação à forma
como fora tratado, sendo responsável por várias barbáries, quando se manifesta
em forma de guerras, pedofilia, estupros, assassinatos.
O aprisionamento do Eros iniciou com o surgimento da propriedade privada. O homem
possuidor de bens necessitava que sua esposa fosse monogâmica, a fim de
garantir que sua propriedade continuasse nas mãos de seus descendentes, após a
sua morte. Para Engels:
A Família Monogâmica [...] Baseia-se no
predomínio do homem; sua finalidade expressa é a de procriar filhos cuja
paternidade seja indiscutível; e exige-se essa paternidade indiscutível porque
os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão, um dia, na posse dos
bens de seu pai (1991, p. 66).
A cultura, religião, leis orais e escritas
buscaram a todo o custo garantir a propriedade privada, e essa, num movimento
recursivo, gerou a cultura, religião e leis. Nós podemos perceber um exemplo
disso nos Dez Mandamentos Mosaicos. No último deles há, ao mesmo tempo, a
proibição de que outras pessoas desejem, a fim de evitar que elas tomem para si
a propriedade do homem, o patriarca da família. Essa propriedade correspondia à
casa, à mulher, aos escravos e aos animais. Segundo o texto bíblico: “Não
cobiçarás a casa do teu próximo; não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu
escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem nada do que lhe
pertence” (BÍBLIA, op. cit., p. 91).
A submissão do Eros pela propriedade atinge o seu auge no capitalismo. Esse
coloniza nossos sonhos e desejos e coloca o Eros
para trabalhar em seu favor. O Eros é
reprimido de forma diferente, conforme o fora nas civilizações que precederam ao
advento do capitalismo, ele é “enganado”, ou seja, o capitalismo desviou o foco
do Eros, da continuidade da vida para
a aquisição de bens de consumo. Segundo Morin:
A injeção do erotismo na representação de uma
mercadoria não erótica (as publicidades que juntam uma atraente imagem feminina
a uma geladeira, uma máquina de lavar ou uma soda) tem por função não apenas
(ou tanto) provocar diretamente o consumo masculino, mas de estetizar, aos
olhos das mulheres, a mercadoria de que elas se apropriarão; ela põe em jogo
junto ao eventual cliente a magia da identificação sedutora; a mercadoria faz o
papel de mulher desejável, para ser desejada pelas mulheres, apelando para seu
desejo de serem desejadas pelos homens (MORIN, 1975, p.121).
O Eros,
em estado de fetiche, conduz nossos sonhos, aspirações e, em especial, nossa
razão a fim de que trabalhemos para aquisição de bens de consumo. Esse
movimento do Eros contribui para a
continuidade do processo de produção e é por ela alimentado, o que gera mais
consumo. Essa tríade recursiva entre Eros,
consumo e produção (Eros ↔Consumo
↔Produção e Produção ↔ Eros ↔
Consumo), em que uma é simultaneamente causa e efeito das demais, proporciona
processo, em curso, de morte do ser humano.
Estamos vivendo um momento de trevas que nos
impede a reflexão e ação. Nossas forças de transformação são poucas e frágeis
enquanto que as forças de destruição do planeta e da vida humana são muitas e
fortes. O processo de fetiche do Eros
desdobra-se em mais dois problemas. O primeiro refere-se à crise da esperança e
o segundo refere-se à fragmentação do saber.
A esperança
de transcender o atual status quo é
abafada pela imanência do capitalismo, mas também é minada pela desilusão das
propostas de transformação do passado. A queda do Muro de Berlim, em 1989,
marcou simbolicamente não somente a derrocada do Socialismo Real, como também
um abalo na esperança de transformação de muitos intelectuais e militantes, em
especial, aqueles que não pertenciam ao bloco dos países socialistas.
Com a deterioração do mito do “socialismo
real” e com o processo reformador da perestroika, que conduz à implosão do
totalitarismo comunista e ao desmembramento de seu império (1987-1991),
afunda-se a grande religião de salvação terrestre que havia sido elaborada no
século XIX para suprimir a exploração do homem pelo homem, bem como a tentativa
de construir um modelo de governança planetária, conduzida pelos sacerdotes
pertencentes a essa religião de salvação terrestre (MORIN; CIURANA; MOTTA,
2003, p. 79).
O pensamento
socialista começa a ser elaborado, a partir do advento do capitalismo
mercantil, destacando-se nesse período as reflexões de Thomas More[9] (1478-1535)
e Tommasco Campanella[10]
(1568-1639). Porém o pensamento socialista ganha corpo e estrutura a partir do
Século XIX com o chamado socialismo científico, em especial, com os trabalhos
de Karl Marx (1818 – 1883) e Friedrich Engels (1820 – 1895).
O parágrafo
de abertura de Manifesto do Partido
Comunista de Marx e Engels: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do
comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para
conjurá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os
policiais da Alemanha” (2009, p. 51), nos revela que os socialistas estavam
organizados e, em grande número, se espalhavam pela Europa. E isso provocou um
grande desconforto nas forças europeias que, segundo Marx, se uniram para
combatê-lo.
O socialismo
seria a opção à exploração capitalista. Segundo Morin: “O socialismo propunha
uma política de civilização destinada a suprimir a barbárie das relações
humanas: a exploração do homem pelo homem, o arbítrio dos poderes, o
egocentrismo, a crueldade, a incompreensão” (1997, p. 149).
Os
socialistas apostaram que a transformação de uma sociedade opressora
capitalista para uma sociedade igualitária socialista ocorreria a partir de
operador principal (o partido, o proletariado), de uma ação principal (a tomada
do poder), de um núcleo social principal (os meios de produção). Assim, o
proletariado seria o motor[11] de
transformação, ou seja, ele lutaria contra os aparelhos de repressão burgueses.
O proletariado seria dirigido pela massa pensante da ação revolucionária, os
líderes do Partido Comunista, o chamado partido de vanguarda. Após o confronto
entre as forças burguesas e as forças socialistas e prevendo a vitória dos
socialistas, esses assumiriam o poder estatal e controlariam os meios de
produção.
No capitalismo,
segundo Marx, os burgueses se enriquecem sugando a força de trabalho do
proletariado, através da apropriação da mais-valia[12],
que é a diferença entre o valor de venda da mercadoria e o valor do que é pago
ao trabalhador pela sua força de trabalho, somado ao valor pago pelos meios de
produção. Os socialistas, então, propuseram que esses meios de produção fossem
controlados pelo Estado; assim, não haveria a exploração do proletariado e o
dinheiro excedente da produção voltaria para o proletariado por meio de serviços
estatais. O correto conhecimento do funcionamento da forma como se dá a
produção e das relações econômicas garantiam, assim, a permanência e
continuidade do socialismo.
O socialismo
real praticamente se extinguiu da história da humanidade. O primeiro fator que
destacamos para a derrocada do socialismo é de ordem epistemológica. Não é
possível prever e determinar o futuro a partir do conhecimento do presente e
das forças que atuam nele, pois, simplesmente, nós não conhecemos plenamente o
presente e há embriões de forças que atuarão futuramente, as quais são
imperceptíveis aos nossos olhos, no presente. O conhecimento pleno do presente
e uma possível previsão do futuro, conforme quiseram os socialistas, se tornam
quase impossíveis, dentro de um sistema ideológico, como ocorreu com o
socialismo, pois as pessoas apreendem o mundo a partir das lentes ideológicas, das
quais participam ou a ela estão submetidas; mas, ao mesmo tempo, essas lentes
ideológicas impedem que as pessoas vejam aquilo que escapa aos seus limites.
Segundo Morin:
O que é uma ideologia do ponto de vista
informacional? É um sistema de idéias feito para controlar, acolher, rejeitar a
informação. Se a ideologia é teoria, ela é, em princípio, aberta à informação
que não é conforme a ela, que a pode questionar. Se é doutrina, ela é, em
princípio, fechada a toda informação não-conforme. A ideologia política é muito
mais doutrina do que teoria. Neste ponto, chegamos ao problema capital: a
relação repulsiva e potencialmente desintegradora entre informação e ideologia
política. É pelo fato de que a informação é um explosivo virtual para a
ideologia, que esta necessita manter uma relação opressora e repressora em
relação à informação (1986, p. 45).
O segundo
fator deriva do primeiro, visto que não é possível determinar os resultados da
dialética, conforme pretenderam os socialistas. Segundo Morin: a “Dialética não
caminha sobre os pés nem sobre a cabeça; ela gira, pois é antes de tudo jogo de
inter-retro-ações, isto é, elo em perpétuo movimento” (2010, p. 15). O
resultado da dialética é algo sempre novo e se é novo, nós não sabemos o que é,
pois se soubéssemos, não seria novo e sim conhecido e o que nos é conhecido,
não é novo, e sim velho. Assim, como determinar que da dialética estabelecida
entre tese – burguesia versus
antítese – proletariado, resultaria necessariamente o Estado Socialista?
E ademais, os
socialistas acreditaram ser possível a superação da tese pela antítese. Porém,
o movimento dialético é ad eternum,
ou seja, não tem fim. Assim, do confronto entre tese e antítese originam novas
teses e novas antíteses e essa novamente voltam a se enfrentar originando novas
ou ressuscitando antigas teses, antíteses. Por exemplo, o socialismo não
encerrou a luta entre as forças opostas. Os membros do Partido Comunista
passaram a explorar o povo, ou seja, o socialismo ao invés de estabelecer a
ditadura do proletariado[13],
conforme quiseram os socialistas, estabeleceram a ditadura sobre o
proletariado, ou seja, eles recriaram um novo movimento antagônico de forças
opostas.
Esse eterno
movimento dialético, Morin chama de dialógico. Segundo o autor:
[...] digamos que dialógico significa unidade
simbiótica de duas lógicas, que simultaneamente se alimentam uma à outra, se
concorrenciam, se parasitam mutuamente, se opõem e se combatem mortalmente.
Digo dialógico, não para afastar a idéia de
dialéctica, mas para fazê-lo derivar da dialéctica. A dialéctica da ordem e da
desordem situa-se ao nível dos fenómenos; a idéia de dialógico situa-se ao
nível do princípio e, como ouso adiantar, ao nível do paradigma [...]. Com
efeito, para conceber a dialógica da ordem e da desordem, temos de suspender o
paradigma lógico onde a ordem exclui a desordem e, inversamente, onde a
desordem exclui a ordem. Temos de conceber uma relação fundamentalmente
complexa, ou seja, ao mesmo tempo complementar, concorrente, antagônica e
incerta, entre estas duas noções. Assim, a ordem e a desordem, sob determinado
ângulo, são, não só distintas, mas também totalmente opostas; sob outro ângulo,
apesar das distinções e oposições, estas duas noções são uma (1977, p. 79-80).
O terceiro
fator que atribuímos para a queda do socialismo real equivale ao fator que também
proporciona as crises do capitalismo[14]. O capitalismo e o socialismo foram
estruturados a partir do pensamento moderno, logo a crise de ambos os sistemas
remete à falha do próprio pensamento moderno.
Ambos os
sistemas apostaram na produção como chave para o desenvolvimento. No
capitalismo, o fetiche está generalizado na população; no socialismo, houve
concentração da produção nas mãos dos dirigentes do Partido Comunista. E esses
garantiram a curta permanência de seu poderio, através do uso da força militar
sobre a população. Assim, o capitalismo exerce o seu domínio pela escravidão
dos sonhos e aspirações, enquanto o socialismo exerceu o seu domínio reprimindo
os sonhos e as aspirações pelo uso da força bélica.
Ademais, o socialismo real, aos moldes
soviéticos, não se deu a partir da transição de uma sociedade capitalista para
a sociedade socialista, conforme o proposto por Karl Marx. Mas da transição de
uma sociedade feudal para a socialista, tal como o ocorrido com as duas grandes
potências socialistas Rússia e China; ambas não viveram a experiência do
capitalismo antes de serem socialistas.
A transição armada do feudalismo para o
socialismo talvez explique o porquê do grande fascínio dos países socialistas
pela produção bélica. Da mesma forma que o Eros
dentro do capitalismo sofreu fetiche por meio da mercadoria, no socialismo, o Eros também foi submetido, não pelos
bens de consumo, mas pela produção bélica. Assim, as sociedades socialistas
foram movimentadas por um motor recursivo, entre militarismo de Estado,
submissão da população, produção bélica.
A crise da esperança se explica, então, pela
crise da forma como se dá a produção, conforme ocorre nos moldes modernos, de
efeitos nefastos. Logo, para compreendermos a crise da esperança, devemos
entender a crise, gerada a partir do pensamento moderno.
O Mito de Rei
Midas[15]
nos ajuda a compreender o pensamento moderno, as aspirações e as cegueiras
presentes no conhecimento, na ciência, na política, na economia moderna, as
suas consequências para o planeta e para o ser humano, bem como a onda de
descrença que impregnou grande parte dos corações, após a falência da utopia
moderna. E, talvez, ele revele também o futuro da humanidade após o período
moderno.
Segundo a
mitologia grega, Sileno, professor e amigo fiel de Baco, o deus do vinho,
desaparecera, e vagando, bêbado e perdido, pelas florestas de Frígia, foi
levado por camponeses ao Rei Midas, que lhe forneceu uma boa hospedagem e, após
onze dias, o levou são e salvo a Baco. O deus ficou extremamente agradecido e,
como recompensa, disse que atenderia a qualquer pedido do Rei. Midas, então,
pediu que tudo o que tocasse se transformasse em ouro. Baco, mesmo sabendo da
gravidade do pedido, atendeu à solicitação. O Rei Midas voltou feliz para a
casa e já, no caminho, começou a testar seus poderes. Ele arrancou um ramo de
carvalho e esse se transformou em ouro; pegou uma pedra e um torrão de terra e
ambos imediatamente se transformaram em ouro. Em sua casa, o Rei ordenou que
seus criados lhe servissem um banquete. Porém, para seu espanto, o pão
transformou-se em ouro, impossibilitando a mastigação; tomou um cálice de
vinho, mas esse se tornou ouro derretido, ao ser engolido. E, o mais trágico,
sua filha ao encostar-se a seu pai, também, transformou-se em uma estátua do
nobre material. Midas foi tomado por uma enorme tristeza e, diante da morte
certa por não poder se alimentar, ergueu os braços, implorando a Baco, que lhe
retirasse seu dom. Baco, por ser uma divindade benevolente, atendeu ao pedido
de Midas e mandou que ele fosse ao rio Pactolo, retirasse um pouco de água e
aspergisse aquilo que tocara; assim fez Midas, a começar por sua filha. Depois
de ter restituído a natureza dos objetos que havia tocado, Midas abandonou as
riquezas e foi viver nos campos, cultuando o deus dos bosques, Pã.
O desejo de
transformar tudo em ouro, ou melhor, em fonte de riqueza e desenvolvimento
marcou o pensamento moderno e gerou uma grande empolgação na população.
Segundo a
concepção moderna, após o fim da Idade Média[16], o ser
humano, fazendo o uso correto da razão, em suas duas vertentes, racionalismo e
empirismo, atingiria a maioridade intelectual, ou seja, ele pensaria por si só,
sem uma força impositiva, tal como eram os dogmas católicos, no período
precedente. Assim, o ser humano, livre, conduziria os desígnios de sua própria
vida e da sociedade.
Podemos
perceber um exemplo de crença na modernidade na resposta de Immanuel Kant (1724
– 1804) à pergunta “O que é Iluminismo?”. Segundo o filósofo: “O iluminismo é a
saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a
incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem” (1988, p.
11).
O pensamento
moderno ocidental levou um grande tempo para ser gerado, e seu inicio não se
deu de forma unânime, haja vista, que durante a Idade Medieval, a população europeia
vivia, em sua maioria, em feudos, sendo difícil a comunicação entre os feudais.
Ele nasce a partir de várias correntes artísticas, cientificas, filosóficas,
políticas, teológicas que inicialmente tiveram em comum a busca da liberdade do
ser humano da tutela dogmática da Igreja Católica.
Encontramos germes
do pensamento moderno, dentro do próprio catolicismo, no final do período
escolástico, tais como os filósofos e teólogos Duns Scotus[17]
(1265 – 1308) e seu discípulo Guilherme de Ockham[18]
(1285 – 1347). Porém o modernismo realmente começa a ser desenhado e delineado
com o advento do Renascimento[19] e
ganha consistência teórica a partir do século XVIII, Século das Luzes. As duas
principais revoluções políticas do século XVIII: A Guerra da Independência dos
Estados Unidos da América (1775 – 1783), e a Revolução Francesa (1789 – 1799)
sinalizam a mudança ocorrida no nomos
e ethos da humanidade.
A humanidade doravante foi tomada pelo complexo do
Rei Midas. Ela creu ser possível transformar qualquer coisa que tocasse em
ouro, desde a regulamentação da sociabilidade às transformações da natureza,
via ciência e tecnologia. A promessa de uma vida paradisíaca foi trazida do
pós-morte, conforme pregara a Igreja Católica, para esta vida. E os sacerdotes deixaram
de ser os clérigos católicos para se tornar os cientistas. Segundo Morin:
É impressionante que sobre a ruína da providência divina
a humanidade leiga, a Filosofia das luzes, a ideologia da razão tenham podido
fazer uma hipóstase e uma nova divinização da ideia de progresso, ao
transformá-lo em lei e necessidade da história humana; e esta ideia foi tão
desencarnada, tão desacoplada de toda realidade física e biológica que levou a
ignorar o princípio de corrupção e desintegração que atua na PHISIS, no cosmos,
na Bios (MORIN, 2010, p. 29-30).
O pensamento
moderno, ao propor a ruptura e a superação do pensamento medieval-religioso,
proporcionou duas mudanças: a primeira foi na noosfera, com o destronamento do
deus-moral judaico-cristão; a segunda foi referente ao conhecimento, que se
tornou fragmentado e hiperespecializado.
O pensamento
moderno necessitou de uma ruptura efetiva com o pensamento religioso. Essa
ruptura foi motivada contra o poderio[20]
político-econômico da Igreja Católica no período medieval, o que
impossibilitava as transformações modernas. Para tal, foi preciso a revolta
armada, como o ocorrido nos anos da Revolução Francesa (1789 – 1799). Porém
somente a imposição da baioneta não foi suficiente para destituir o poderio
clerical, que contava, desde a queda do Império Romano, em 476 d.C., com mais
de um milênio de história. Foi necessária uma mudança na noosfera europeia e,
em um círculo recursivo, essa mudança foi a responsável pela revolução armada.
A mudança na noosfera que defendemos neste trabalho
parte da apresentação da morte de Deus, narrada pelo filósofo alemão Friedrich
Nietzsche (1844 – 1900), em que ele descreve a morte do Deus judaico-cristão;
mas divergimos, em parte, da concepção nietzschiana. Segundo o filósofo:
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã
acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente:
“Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que
não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. [...] O homem
louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi
Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos
seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o
mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar
a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós?
Para longe de todos os sóis? [...] Não temos que acender lanternas de manhã?
Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da
putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua
morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os
assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou
inteiro sob nossos punhais – quem nos limpará este sangue? [...] Não deveríamos
nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? [...] (2001,
fragmento 125, p.147-8).
Para
Nietzsche, o Deus judaico-cristão morreu, e morreu antes mesmo do advento do
iluminismo, Ele fora assassinado pelas mãos de seus seguidores, no período
medieval, isto é, o homem louco com uma lanterna nas mãos, em plena manhã,
procurava iluminar o que já estava claro e evidente. E gritava, à procura de
Deus, que estava morto havia algum tempo e já se encontrando em estado de
putrefação. E, com a morte de Deus, o ser humano deveria se tornar um deus para
si mesmo, concepção em que Nietzsche, em outro momento, trabalha o conceito de
super-homem[21].
A leitura que
fazemos do ocorrido com Deus judaico-cristão, após a passagem do período
medieval para a idade moderna, é que Ele foi destronado do seu posto de único
regulador da moral, no nível da noosfera, mas, o Deus judaico-cristão permanece
vivo e presente na noosfera, haja vista, que há pessoas que o cultuam e,
ademais, os deuses não morrem, pois eles são imortais; eles podem perder as
suas forças, caso caiam no esquecimento da humanidade, porém a qualquer
momento, eles podem ressurgir das cinzas, conforme Fênix. Os deuses, embora
oriundos na mente humana, têm vida própria e, uma vez criados, eles agem
independentemente da vontade daqueles que os criaram, não podendo, assim, os
seus criadores os destruir. Os deuses, semelhante ao que ocorre com as
ideias-força são, segundo Morin: “[...] dotadas de vida própria porque dispõem,
como os vírus, em um meio (cultural/cerebral) favorável, da capacidade de auto
nutrição e de auto-reprodução” (2008, p. 136).
O Deus
judaico-cristão perdeu a sua onipresença e onipotência[22], ou seja,
ele, só, não regula a sociedade, nem tem mais poderes para tal na sociedade
moderna. Ele, ao ser destronado de sua unicidade, permitiu que deuses nascessem
e outros renascessem na noosfera. E, neste panteão moderno, também surgiram
ideias-força, que, conforme dissemos, possuem, na modernidade, a mesma força
dos deuses de outrora.
Assim, como o
Deus judaico-cristão divide a noosfera com outros deuses e ideias-força, então,
não lhe pertence mais o título de “Regulador Universal da Moral”, sendo que
esse título, para o todo da sociedade ocidental, não é propriedade de nenhum
outro deus ou ideia-força. Então, como não há no nível da noosfera um único
ente regulador da moral, o deus possuidor do título de deus-moral está morto[23],
mas não o ente (o Deus judaico-cristão) que outrora era possuidor desse título.
Os seres da
noosfera travam suas lutas no mundo dos humanos. Assim, na guerra entre os
seres humanos, uma ideia-força ou um deus se torna soberano em relação aos
demais ou um ser único, absoluto. Esse posto é alcançado à custa da morte,
tortura e perseguição de vários seguidores de outras ideias-forças ou outros
deuses, tais como o ocorrido nas Inquisições Católica e Calvinista, na Jihad (Guerra Santa) muçulmana. E também
nas perseguições ideológicas, como as guerras particulares, durante a Guerra
Fria (1945 – 1991), o macarthismo[24],
nos Estados Unidos da América, que perseguiu aqueles que pensavam diferente da
ideologia capitalista norte-americana, classificando-os de comunistas; e o
mesmo ocorrido na União Soviética, sob a tutela do Partido Comunista, que
perseguiu os que pensavam diferente do comunismo oficial.
O Deus
judaico-cristão garantiu durante a Idade Média o posto de regulador único da
moral, por meio das pregações ideológicas do clero, mas também pela força do
Tribunal do Santo Ofício – órgão interno da Igreja Católica, responsável pela
Inquisição –, contudo foi destituído do cargo pelos modernos, em nome das
ideias-força da ciência e da razão. Porém essas ideias-força não conseguiram
assumir o posto do Deus.
Isso causou
um grave problema para o pensamento ético, pois a humanidade não possui mais um
único fundamento que garanta a certeza da ação ética, ou seja, não há mais
parâmetros que nos indiquem os caminhos a serem seguidos e se esses estão
corretos[25]
ou não, visto que algo está correto ou errado em relação a alguma outra coisa.
O período
atual apresenta uma crise de fundamentos, ou seja, tudo aquilo que nos dava
aporte para nossas ações éticas não tem mais a força reguladora e mobilizadora
da sociedade. Segundo Morin:
Os fundamentos da ética estão em crise no mundo ocidental.
Deus está ausente. A lei foi dessacralizada. O superego social já não se impõe
incondicionalmente e, em alguns casos, também está ausente. O sentido da
responsabilidade encolheu; o sentido da solidariedade enfraqueceu-se.
A crise dos fundamentos da ética situa-se numa crise
geral dos fundamentos da certeza: crise dos fundamentos do conhecimento
filosófico, crise dos fundamentos do conhecimento científico (2007, p. 27;
grifo nosso).
A crise de
fundamentos gerou uma enorme desesperança e vazio em diversos grupos sociais
que lutavam por uma sociedade mais justa. Muitos militantes e intelectuais
estagnaram diante das determinações neoliberais; outros, tal como Francis
Fukuyama (1992), afirmaram que chegamos ao fim da história e a única
alternativa era adaptar-nos às imposições neoliberais. Essas reações acontecem,
pois, desde o surgimento dos primeiros seres humanos, os fundamentos nos davam a
certeza de que nossa ação daria certo e que estávamos agindo corretamente. E
mesmo sendo a certeza uma ilusão, pois é impossível conhecer plenamente o real,
porque o entendimento que temos do real é uma duplicação no nível da noosfera,
a humanidade moderna pôde traçar os seus caminhos, conforme aquilo que
acreditava ser a verdade.
A modernidade
foi desejada pelo ser humano, assim os paradigmas modernos foram aos poucos
sendo construídos, paralelamente ao surgimento da sociedade moderna. Assim,
diante da falência do modelo medieval, que se deu devido às falhas da
cristandade e pelo desejo de liberdade de pensamento e ação do indivíduo, os
modernos puderam pensar a ética e a ação humana, baseados em fundamentos da
razão e da ciência moderna, por eles criados.
A crise da modernidade, talvez, tenha surgido
precocemente, não havendo tempo de assimilação por parte da maioria da
humanidade, nem mesmo do que seja a modernidade e, principalmente, de suas
falhas epistemológicas, estruturais e das consequências da ação e do pensamento
moderno. A fragmentação do saber, característica moderna, contribuiu e
contribui em grande parte para esse fenômeno.
A mudança da noosfera promovida pelos
modernos, que substituiu o Deus-moral pela razão e ciência, essas endeusadas,
exigiu, em um círculo recursivo, a fragmentação do saber. O pensamento, no
período medieval, era concebido de forma unitária. As diversas formas de saber
estavam interligadas entre si e submissas ao pensamento teológico. Ao contrário
do que propagou a ideologia iluminista como a Idade Média sendo a “idade das
trevas”, nós encontramos, nesse período, grandes tratados[26]
sobre várias áreas da ciência, como tratados médicos, matemáticos,
astrológicos, cartográficos entre outros. A Idade Média foi, portanto,
produtora de ciência o que possibilitou o desenvolvimento do período moderno.
Um exemplo de ciência interligada à religião se encontra nas obras de Galileu
Galilei (1564 – 1642), considerado um dos pais da Ciência Moderna. Galileu
desenvolveu parte de seus estudos sobre o movimento do universo financiado pelo
Vaticano, em especial, sob o papado de Urbano VIII (1568 – 1644; papa entre os
anos de 1623 e 1644), que incentivou os estudos heliocêntricos de Galileu; porém,
por ironia da história, sob esse papado é que Galileu foi condenado.
A condenação de Galileu ilustra o porquê da
fragmentação do conhecimento, ocorrido na modernidade. Os modernos, para
desenvolverem o conhecimento livre das amarras dogmáticas da Igreja Católica,
necessitaram fragmentar o conhecimento, uma vez que os sistemas ético-morais
eram controlados pela Igreja Católica. A fragmentação possibilitou o surgimento
e o desenvolvimento das ciências autônomas, porém essas disciplinas e a ética
foram separadas e concebidas de forma distinta. Segundo Morin:
Os tempos modernos estimularam o
desenvolvimento de uma política autônoma, de uma arte autônoma, levando a um
deslocamento da ética global imposta pela teologia medieval. Certo, a política
nem sempre obedecia à ética. Mas, desde Maquiavel, a ética e a política
acham-se oficialmente separadas, visto que o príncipe (o governante) deve
obedecer à lógica da utilidade e da eficácia, não à moral. A economia comporta,
claro, uma ética dos negócios, exigência de respeito aos contratos, mas obedece
aos imperativos do lucro, o que leva à instrumentalização e à exploração de
outros seres humanos. A ciência moderna alicerçou-se sobre a separação entre
juízo de fato e juízo de valor, ou seja, entre, de um lado, o conhecimento e,
de outro, a ética. A ética do conhecimento pelo conhecimento à qual a ciência
obedece não enxerga as graves consequências geradas pelas extraordinárias
potências de morte e de manipulação suscitadas pelo progresso científico. O
desenvolvimento técnico, inseparável do desenvolvimento científico e econômico,
permitiu o hiperdesenvolvimento da racionalidade instrumental, que pode ser
posta a serviço dos fins mais imorais. Também as artes se emanciparam
progressivamente de toda finalidade edificante e rejeitam qualquer controle
ético. Certo, todas essas atividades necessitam de um mínimo de ética
profissional, mas elas só excepcionalmente carregam uma perspectiva moral
(2007, p. 25).
A fragmentação do saber separou o conhecimento
em disciplinas isoladas uma das outras; em especial, essas disciplinas estão
separadas da ética e submissas à economia. Assim, cada disciplina estuda e,
cada vez mais, aprofunda o conhecimento que é específico de sua área de
conhecimento, mas, paralelamente, menos conhecem o todo em que estão inseridas
todas as disciplinas. Essa fragmentação impossibilita a apreensão do global da
sociedade e, sem esse conhecimento do todo, as pessoas se tornam cegas para a
realidade e os seus problemas, bem como para propor alternativas a eles.
No momento em que o planeta tem cada vez mais
necessidades de espíritos aptos a apreender seus problemas fundamentais e
globais, a compreender sua complexidade, os sistemas de ensino continuam a
dividir e fragmentar os conhecimentos que precisam ser religados, a formar
mentes unidimensionais e redutoras, que privilegiam apenas uma dimensão dos
problemas e ocultam as outras [...] (MORIN; CIURANA; MOTTA, 2003, p. 11-2).
A fragmentação diminuiu o sentimento de
responsabilidade social, cada qual se torna responsável apenas por aquilo que é
de sua especificidade. O sujeito não é cobrado para agir no amplo contexto da
sociedade, nem no jogo democrático político, que também se tornou um campo de
atuação de especialistas, o que afasta as pessoas da política e essa das
pessoas. As pessoas distantes da vida política permitem que a elite as conduza
ao seu bel prazer. Assim, a política se torna reguladora do neoliberalismo e
continuadora do alto nível de desigualdade social. A elite, segundo Morin;
“controla a informação, competência gestionária e a educação especializada de
alto nível. A política está a serviço do crescimento e do funcionamento
harmonioso do conjunto do sistema” (1997, p. 125).
A fragmentação do saber, ao separar o
conhecimento, também separou as dimensões subjetivas e objetivas da realidade,
o que proporcionou a simplificação do conhecimento, ou seja, o conhecimento
passou a ser visto apenas em uma dimensão, a dimensão objetiva. A noosfera e os
aspectos subjetivos foram deixados de ser considerados e buscou-se um
conhecimento neutro, o que, de antemão segundo o pensamento complexo, é
impossível.
O conhecimento reduzido e fragmentado não é
capaz de perceber que ele próprio é o causador dos problemas atuais, que
engendram e potencializam as forças destrutivas, as barbáries[27]
presentes no espírito humano, tais como as detonações das bombas atômicas, as
explorações ocorridas no mundo do trabalho. Segundo Petraglia:
Hoje, no entanto, todos estão perplexos diante
dos rumos tomados, cujas consequências não foram avaliadas pelos indivíduos,
tampouco pelos grupos, que perderam a noção de equilíbrio. A corrida pelo
progresso despertou a concorrência entre os grupos e a competição entre os
indivíduos; gerou egoísmo, individualismo, solidão, desespero e dor. Somos
vítimas de varias carências e, como seres sociais e sócios de uma coletividade,
dividimos com ela os lucros e os prejuízos. A fragmentação do conhecimento e a
especialização deixaram marcas e cicatrizes nos corpos e nas almas dos que
ansiavam por esse tipo de avanço, mas acreditamos que o ser humano não deseja
ser vítima de si mesmo (2001, p. 13-4).
A análise de conjuntura complexa, que propomos
no início deste capítulo, nos revela os problemas atuais e a estrutura
dialógica, que movimenta a humanidade, nas duas primeiras décadas do terceiro
milênio e é formada pela tríplice aliança: Consumo ↔ Produção ↔ Eros.
Apresentamos algumas dificuldades para propormos alternativas a esse modelo
destrutivo, que reforça a crise da esperança, oriunda do fim do socialismo e do
fracasso do pensamento moderno: a ausência de fundamentos fortes o suficientes que
possibilitem movimentar a humanidade em sentido contrário, e a fragmentação do
saber que dificulta a apreensão da multidimensionalidade da realidade.
Diante desse cenário, difícil de ser mudado,
Edgar Morin, busca na própria estrutura dialógica entre Eros e Thánatos, caminhos e alternativas para a humanidade.
Se Eros,
que é o impulso de vida, está a serviço de Thánatos,
que é o impulso de morte, ambos os impulsos estabelecem uma eterna relação
dialógica, em que um é o contrário do outro. E no choque e na disputa entre
ambos, surgem novas mortes a partir da vida inicial e novas vidas a partir da
morte inicial. Conforme percebemos na fábula de Esopo, autor grego, que viveu
por volta do século VI a.C., ambos os impulsos aparecem unidos, não sendo
possível separá-los. Segundo o fabulista:
Era uma tarde quente e abafada, e Eros,
cansado de brincar e derrubado pelo calor, abrigou-se numa caverna fresca e
escura.
Era a caverna da própria Morte.
Eros, querendo apenas descansar, jogou-se displicentemente ao chão, tão
descuidadamente que todas as suas flechas caíram.
Quando ele acordou, percebeu que elas tinham se misturado com as
flechas da Morte, que estavam espalhadas no solo da caverna.
Eram tão parecidas que Eros
não conseguia distingui-las.
No entanto, ele sabia quantas flechas tinha consigo e ajuntou a
quantia certa.
Naturalmente, Eros levou
algumas flechas que pertenciam à Morte e deixou algumas das suas.
E é assim que vemos, frequentemente, os corações dos velhos e dos
moribundos, atingidos pelas flechas do Amor, e às vezes, vemos os corações dos
jovens capturados pela Morte (apud
KOVÁCS, 1992, p. 149).
Então, talvez, Thánatos pode libertar Eros
de sua submissão à propriedade privada e aos bens de consumo. A esse respeito,
Morin (2007, p. 181) cita uma célebre frase de Hölderlin: “onde cresce o
perigo, cresce também o que salva”. O perigo da destruição pode levar à mudança
de nossas ações, atitudes e pensamentos em relação à natureza e ao próprio Ser
Humano. Morin vê na ameaça da morte a possibilidade de um novo motor de
transformação; segundo o autor: “O Grande Motor não poderá ser outro que o medo
do suicídio” (1997, p. 131). O suicídio, de que nos fala Morin, é o suicídio da
própria humanidade, ou seja, ela mesma está procurando a morte, o fim. A morte
iminente pode conscientizar a humanidade. O medo do fim pode fazer com que
repensemos os atuais problemas e busquemos novas formas de organizações sociais
e alternativas de transformação da natureza.
Edgar Morin faz uma alusão a uma expressão de
Hegel[28],
presente no Prefácio de Princípios da
Filosofia do Direito, em que o filósofo alemão compara a Filosofia com a
coruja de Minerva que levanta voo, somente ao entardecer, ou seja, o ser humano
necessita de um tempo para captar o real. Para Morin, o entardecer já se foi,
isto é, os resultados e consequências do modelo de organização social e
produção estão afetando de forma direta a humanidade; por isso, se faz
necessário anunciá-los a fim de encontrar e construir os caminhos para a
transformação. Segundo Morin:
Atualmente, não só estamos no momento
crepuscular quando o pássaro de Minerva, ou seja, a sabedoria, levantava vôo,
mas também num momento de trevas, aguardando pelo canto do galo que vai nos
acordar. O canto do galo vai nos deixar alerta para o homem, para a vida e para
a humanidade. E, mesmo que nossos alarmes se revelem exagerados, terão sido
úteis porque terão permitido implantar os meios que possibilitam afastar ou
reduzir o perigo. Se os troianos tivessem dado ouvidos a Cassandra, suas
profecias não se teriam realizado porque o aviso teria sido legítimo (2005a, p.
125).
Edgar Morin, a partir dessa estrutura dialógica
(Eros e Thánatos), fundamentará os
conceitos de Ética e Política de Civilização. Encerramos, com esta poesia,
sobre a dialogia entre as duas pulsões, que pretendemos ser ela esperançosa.
Eros e Thánatos: Vida e
Morte
Pra que viver?
Lutar pra quê?
Por que sofrer?
A natureza pede a morte,
que traz o descanso,
e nos devolve,
ao lugar de paz e harmonia.
A vida surge da rebeldia,
da luta contra o natural,
e nasce, cresce e reproduz,
à custa de tantas outras vidas.
Às quais,
damos a morte,
e elas, em troca...
a vida.
Nós somos
ao mesmo tempo,
inimigos e parceiros da morte.
Vivemos, enfrentando-a,
mas nessa curta batalha,
entregamos-lhe tantos outros combatentes.
Quanta dor!
Quanto sofrimento!
Melhor não seria...
se um Tratado de Paz assinássemos?
Nunca mais nos enfrentaríamos.
Pra que a teimosia?
Infantilidade?
Medo?
Qual é a explicação?
Por que a vida é Bela!
E de tão bela,
nos cativa.
Vivemos em busca de sua beleza,
que com prazer nos retribui,
a fim de gerarmos mais vida.
Ela só tem graça,
ao querermos mais vida.
E é ela própria o sentido da vida,
que só por ela mesma se explica.
Viver de verdade é ser brigão.
Brigar por vida,
contra todas as forças de morte.
É devolver o sorriso da criança,
encher o estômago do faminto,
aconchegar o desabrigado.
Assim quando não tivermos mais vida,
alimentaremos outras tantas,
e venceremos a infinita batalha,
pois afirmaremos, no final, a vida.
(Wilson Horvath)
O
ser humano é simultaneamente 100% biológico e 100% cultural. A cultura nasce
devido a nossa estrutura biológica e a nossa organização biológica é resultado
de nossa cultura. Logo, não existe uma sem a outra.
O
real, a natureza, a biosfera é para o humano uma duplicação ocorrida no nível da
noosfera (mundo cultural). Por isso, nós vivemos um paradoxo em relação à
noosfera, pois é, através dela, que percebemos a realidade e nos comunicamos
com ela; mas devido a essa realidade, nos cegamos para aquilo que ultrapassa o
seu campo de visão.
A
noosfera, construída a partir das transformações que originaram e consolidaram
o pensamento moderno, deu ao ser humano a ideia de que seria possível, por meio
do uso correto da razão e da empiria, controlar a natureza e o progresso
socioeconômico. E a partir do destronamento do Deus judaico-cristão, que
propunha o Paraíso em uma vida pós-morte, o mito da felicidade foi perseguido
para ser vivido neste mundo. E, assim, os bens de consumo se tornaram sinônimos
de felicidade.
A
ideia de felicidade e a crença na ciência moderna fizeram o ser humano
estabelecer ações destrutivas contra a biosfera e contra si próprio, pois teve
a sua vida escravizada pela produção. O desejo de consumo exige um aumento da
produção, por meio do desenvolvimento de novas técnicas, que geram mais e novos
bens de consumo que, por sua vez, despertam novos desejos.
O
socialismo real, que seria uma das saídas ao modelo capitalista, praticamente
se extinguiu, o que provocou um abalo nas propostas de transformação de muitos
intelectuais e militantes, em especial, os que não pertenciam ao bloco
socialista e, devido a esse fato, desconheciam ou não consideravam o
totalitarismo presente nesse regime.
A
atual crise ecológica e as mazelas oriundas do sistema capitalista despertam
outra vez o surgimento de novas propostas de transformação, entre as quais as
propostas de Ética e Política de Civil, apresentadas por Edgar Morin, e que veremos
no próximo capítulo deste trabalho.
O medo da morte da
humanidade ou o pavor do suicídio coletivo, que cada vez mais se aproxima, pode
fazer com que mudemos o nosso modo de pensar e agir, pessoal e coletivo, e
construamos um novo mundo e um novo ser humano.
[1]O Capitalismo atinge praticamente
todos os cantos do planeta e estabelece o seu modelo de produção, exploração e
destruição. Assim, por exemplo, uma hidrelétrica é construída em terras
indígenas ou de pequenos camponeses, expulsando-os de suas moradas. Uma
indústria, atrás de mão de obra barata, se estabelece em um país pobre, de
cultura agrícola, e suga dos trabalhadores e do meio natural a força de
produção e matérias-primas necessárias para a industrialização, desrespeitando
os direitos humanos e degradando a natureza.
Marx e Engels, a esse respeito, dizem: “Pela exploração
do mercado mundial a burguesia imprime um caráter cosmopolita à produção e ao
consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, ela retirou à
indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas e
continuam a sê-lo diariamente. São suplantadas por novas indústrias, cuja
introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas,
indústrias que não empregam mais matérias-primas autóctones, mas sim
matérias-primas vindas das regiões mais distantes, e cujos produtos se consomem
não somente no próprio país, mas em todas as partes do globo. Em lugar das
antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas
necessidades, que reclamam para sua satisfação os produtos das regiões mais
longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regiões
e nações que se bastavam a si próprias, desenvolvem-se um intercâmbio
universal, uma universal interdependência das nações. E isto se refere tanto à
produção material como à produção intelectual” (2009, p. 58).
[2] Conferir: BULFINCH, 2000, p. 19 – 26.
[3] Conhecimento Técnico ou Técnica, que deriva
da palavra grega téchne (τέχνη), é o
conhecimento prático; uma habilidade, destreza ou arte com vista a um Telos (τέλος) determinado. Assim, por
exemplo, a técnica da medicina é curar as doenças; a técnica do pintor é a
produção de suas telas.
[4] A concepção moriniana do “mundo das
ideias” difere da concepção platônica. Para o filósofo grego, o Mundo das
Ideias ou Hiperurânio é a região onde se encontram as ideias perfeitas, eternas
e imutáveis; essas existem por si e são independentes do pensamento humano.
Para o filósofo francês, o mundo das ideias é uma criação humana, uma
duplicação do real; elas, uma vez criadas, possuem vida independente de seu
criador; porém, sem o humano, elas não existiriam.
[5] Umbanda é uma religião
afro-brasileira. Sua origem se dá a partir da vinda dos negros escravos para o
Brasil. Esses que foram separados de suas famílias e tribos e escravizados com
escravos oriundos de outras tribos africanas. Na África, cada tribo cultuava
apenas um ou número reduzido de Orixás; porém, ao viverem juntos nas senzalas,
houve o sincretismo religioso desses Orixás, acrescido dos Santos e do Deus
católicos formou-se a Umbanda.
[6] Espiritismo: Doutrina religiosa que
se crê ser possível a comunicação com os mortos e a migração das almas, o que
torna possível a reencarnação, que é a encarnação de uma alma que já viveu aqui
voltar em um novo corpo. Um dos grandes expoentes do espiritismo foi Hippolyte
Léon Denizard Rivail (1804 – 1869) que adotou o pseudônimo de Allan Kardec.
[7] Cristianismo Pentecostal: O nome
remete à descida do Espírito Santo – Terceira Pessoa da Trindade, segundo a
doutrina cristã – uma marca característica do pentecostalismo é a glossolalia,
em que o fiel acredita estar falando em línguas diferentes, a língua dos anjos.
[8] Segundo Karl Marx: “A miséria
religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto
contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de
um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do
povo.
A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos
homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as
ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que
precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale
de lágrimas, do qual a religião é a auréola” (2005, p. 146).
[9] Morus em sua obra Utopia (1997), a partir de um imaginário
relato de Rafael Hitlodeu, antigo marinheiro que fora companheiro de Américo
Vespúcio e após a morte deste, continuou a viajar e, nestas viagens, descobriu
a Ilha de Utopia. A cosmovisão dos moradores da ilha e sua organização social
satirizam o modo de vida europeu do século XVI, em especial ao inglês, que
paulatinamente deixava de ser medieval e se tornava burguês. Percebe-se
claramente isso, ao lermos o momento em que desembarcou, na ilha, Rafael e os
embaixadores presentes, eles usavam adereços de ouro, e isso causou risos nas crianças,
pois, lá, as joias ou eram brinquedos de bebês ou o material usado para
identificar os prisioneiros. Em Utopia, todos vivem felizes, não há propriedade
privada – esta entendida por Morus como a fonte de todos os males – nem
exploração do trabalho; as pessoas trabalham seis horas, por dia, e o restante
do tempo, dedicam-se ao cultivo da arte, lazer, filosofia etc. E mesmo assim,
eles conseguiam produzir além de suas necessidades, haja vista, que não havia
ninguém sem trabalhar para sustentar, como ocorria na Inglaterra (nobreza,
clero, forças armadas, comerciantes e burgueses). O governo é republicano e
seus representantes saíam do povo e eram escolhidos tendo por referência sua
experiência e sabedoria. As crianças são educadas, desde cedo, a não serem
egoístas e a ver a felicidade geral maior que a individual. Morus ao imaginar
sua ilha, sofre grande influência de Platão, mas ao contrário deste, a mudança
ocorrida na ilha não foi por vontade do Rei Filósofo, e sim, do povo, ou seja,
realizou-se de baixo para cima.
[10] A obra de Campanella antecede e
alicerça muitos pontos da Filosofia Moderna, como: Descartes, Kant e Leibniz.
Campanella era admirador de Galileu e, ao mesmo tempo, foi crítico à Filosofia
Escolástica, dirigindo sua criticas a Aristóteles. Em sua obra Cidade do Sol (2002), o Filósofo
reproduz a abolição da propriedade privada e o governo exercido pelo rei
filósofo, conforme Platão. A originalidade de Campanella está na junção entre a
Metafísica – está que deve governar, na figura do rei (Hoh) – e as ciências, exercida por um dos assistentes de Hohe Sin.
Sin representa a Sapiência, responsável pelo estudo e aplicabilidade da
astrologia, artes, gramática, matemática, medicina, política. Os outros
assistentes são Pon (Potência,
responsável pela defesa da cidade) e Mor
(Amor, encarregado de garantir que a reprodução humana fosse saudável).
[11] O motor de transformação, proposto
por Marx e Engels, que mudaria o modelo econômico capitalista para o
socialista, é o proletariado. Segundo os filósofos alemães: “Mas a burguesia,
porém, não forjou apenas as armas que representam sua morte; produziu também os
homens que manejarão essas armas – o operariado moderno – os proletários”
(2009, p. 61).
[12] Segundo Marx e Engels: “A mais-valia
produzida pelo prolongamento da jornada de trabalho chamo de mais-valia
absoluta; a mais-valia que, ao contrário, decorre da redução do tempo de
trabalho e da correspondente mudança da proporção entre os dois componentes da
jornada de trabalho chamo de mais-valia relativa” (1996, v.1, t.1, 431-2).
[13]Segundo Marx e Engels: “[...] O que de
novo eu fiz, foi: 1.demonstrar que a existência das classes está apenas ligada
a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção; 2.que a luta das
classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3.que esta mesma
ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para
uma sociedade sem classes (…)” (1982, p. 554-5).
[14] O capitalismo está de pé e
onipresente, nos quatro cantos do mundo, talvez porque a humanidade ainda não
foi capaz de pensar um sistema melhor que ele. Mas, isso não significa que ele
seja a melhor opção para a humanidade. Além dos fatores de destruição ambiental
que apresentamos e opressão à vida particular das pessoas, nós podemos destacar
o altíssimo número de famintos no mundo, os níveis de pobreza que vêm
aumentando assustadoramente a cada ano. Os que não têm nem comida suficiente às
suas necessidades, segundo Jacques Diout, diretor da FAO (Organização das
Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), em 2007 eram aproximadamente
832 milhões de famintos, em 2008: 963 milhões, e em 2009 esse número passaria
de um Bilhão.
[15] Conferir: BULFINCH, 2000, p. 59 – 62.
[16] A Idade Média é classificada pelos
modernos como “Idade das Trevas”, denominação de cunho ideológico a fim de
contrastar com as luzes trazidas pelo iluminismo.
[17] Duns Scotus questionou o principio
medieval: filosofia ancilla theologiae
est (a filosofia é serva da teologia), ou seja, ele questiona o fato de a
reflexão filosófica estar submissa às verdades teológicas, devendo aquela
servir apenas para a melhor compreensão dessa. Scotus afirma que as verdades
católicas eram reveladas e, por isso, não poderiam ser compreendidas pela razão
humana. Assim, a Filosofia deveria deixar de ser serva da teologia e seguir sua
própria trajetória de reflexão, visando o que era humano e lógico.
[18] Guilherme de Ockham deu continuidade
ao legado de seu mestre. Para o Doctor Invincibilis
(doutor invencível, intitulação atribuída a Ockham) o ser humano é dotado de
liberdade plena e essa não poderia ser obstruída por nenhum pensamento
religioso essencialista – conforme o pensamento escolástico-medieval – mas
deveria tomar suas decisões segundo a sua razão e a partir de fatos concretos e
particulares. Ockham propôs que o conhecimento deveria ser intuitivo, ou seja,
partir do particular, sensível, palpável para que atingir o universal; aqui,
mais uma vez, Ockham esteve em oposição ao pensamento medieval, que pregava que
o conhecimento deveria ser Dedutivo, ou seja, partir do Universal, das
essências para chegar ao particular. A teoria do conhecimento proposta pelo Doctor Invincibilis ficou conhecida como:
“Navalha de Ockham”, em que procura eliminar no processo de conhecimento tudo
aquilo que não pertencia ao conhecimento sensorial, ou seja, procura eliminar
os dogmas e a teologia católica. E propõe que, havendo dois caminhos para se
chegar ao conhecimento, deve-se buscar aquele mais simples e de fácil acesso.
[19] O movimento renascentista intermediário
entre o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, iniciou-se por volta do
final do século XIII indo até meados do século XVII. O termo renascença
(renascentista e renascimento) se deu devido à mudança de foco da reflexão que
deixou de ser teocêntrica para se tornar homocêntrica, ou seja, renasceu a
preocupação com o ser humano, suas paixões, fraquezas, ideais, que se tornaram
o centro dos trabalhos filosóficos, artísticos e científicos. O termo também se
deu devido à redescoberta dos textos clássicos gregos, com características
homocêntricas.
[20]A Igreja Católica no período moderno
deixou de ser a possuidora única da verdade ou o depósito da fé (depositumfidei) exclusivo no Ocidente,
conforme o fora no período medieval. Essa constatação não significa em nenhuma
hipótese dizer que ela não tem poder de influenciar a vida política dos
Estados. Porém a sua influência se dá de forma indireta; e a Igreja Católica
divide o seu poder ideológico com outras instituições (igrejas de outros credos
religiosos, mídia, movimentos sociais etc.).
[21]Segundo ABBAGNANO, O conceito de
SUPER-HOMEM é: “O termo que se encontra em Luciano (Calciplits. 16) e que
algumas vezes foi usado para designar o homem-Deus (= Cristo; v. 1'. TASSO.
I.ettere, V. 6); foi empregado antes por Ariosto (Orl. Fm:. 38. 62) para
indicar uma humanidade extraordinária. [...] Mas foi só com Nietzsche que esse
termo assumiu significado filosófico e se tornou popular. O S. é a encarnação
da vontade de potência: "O homem deve ser superado. O S. é o sentido da
terra. [...] O homem é uma corda esticada entre o animal e o S.. uma corda
sobre o abismo" (Alsosprcicb/.aratbuslra,
I. 3). O S. é a encarnação dos valores vitais que Nietzsche contrapõe aos
valores tradicionais; para Nietzsche. É o filósofo criador de valores,
dominador e legislador, em oposição aos "operários da filosofia",
como são comumente considerados [...] Apesar de o conceito nietzschiano não ter
nenhum significado político preciso, acabou servindo de pretexto ao racismo e
às concepções antidemocráticas em política. (2007, p. 933).
[22]A onipresença do Deus judaico-cristão
se limitou, no período medieval, ao Ocidente, em especial, na Europa Cristã.
[23] Essa análise é contextual, ou seja,
ela abarca até as duas primeiras décadas do terceiro milênio, haja vista que
não é possível prever o futuro, segundo a Teoria da Complexidade. Assim, pode
ser que, em um futuro próximo, um deus ou uma ideia-força reestabeleça o trono
do deus-único. E esse exigirá que os seus seguidores faça novas inquisições,
conforme fizeram os cristãos, os socialistas.
[24] A palavra Macartismo (em inglês
McCarthyism) é derivada do nome do Senador norte-americano Joseph Raymond
McCarthy (1908 – 1957), senador entre os anos 1947 e 1957 e grande articulador
da perseguição àqueles, que, segundo o Senador, identificavam-se com os ideais
comunistas. O macarthismo também é conhecido pelos termos: “Terror vermelho” (Red Scare) e “caça às bruxas”, uma
alusão à perseguição das mulheres consideradas bruxas, pela Igreja Católica, no
período medieval.
[25] Segundo Morin; Ciurana; Motta: “À
crise de fundamentos, persistente no desenvolvimento da filosofia moderna, que
se acelera e aprofunda durante todo o século XX, acrescenta-se a insuficiência
da verificação empírica (Popper) e da verificação lógica (Göedel) nas ciências.
Por outro lado, e paralelamente à travessia da crise de fundamento do
conhecimento filosófico e do científico, a própria noção de realidade entra em
crise através da “de-substanciação” da partícula elementar: crise ontológica.
Essas três dimensões de uma mesma crise: a dos fundamentos do conhecimento,
conduzem à crise do fundamento do pensamento. Não há certeza nem verdade
fundadora. Não há causa última, não há última análise, não há verdade adequada
nem explicação primeira. A conquista final da modernidade é a descoberta de que
não existe nenhum fundamento certo para o conhecimento. Por esse motivo, é
preciso advertir que o objeto conhecimento não pode ser um objeto como os
outros, porque não serve apenas para conhecer os demais objetos, mas também
para conhecer a si mesmo” (2003, p. 53).
[26] Os tratados sobre as diversas áreas
das ciências foram escritos, na Idade Média, em geral, por membros do clero ou
por pessoas ligadas a ele. Esses tratados são escritos dentro do pensamento
religioso medieval; assim, os escritos sobre ciência são encontrados dentro de
uma abordagem teológica, essa que serve de pano de fundo para as abordagens
científicas, ora a reflexão parte da teologia para justificar a visão
científica, ora parte da ciência para justificar a teologia. São exemplos
desses tratados: De Civitate Dei (A
Cidade de Deus) de Santo Agostinho (354 – 430); De consolatione philosophiae (A Consolação pela Filosofia) de
Boécio (480 – 524); De divisione naturae (A
Divisão da Natureza) de João Escoto Erígena (810 – 877); Speculum Maius (O Grande Espelho) do frade dominicano Vicente de
Beauvais (1190 – 1264); De proprietatibus
rerum (Livro das propriedades das coisas), do frei franciscano Bartolomeu
Anglicus (1203 – 1272); Thesaurus
Pauperum (Tesouro dos Pobres) de Pedro Hispano, Papa João XXI (1205? –
1277).
[27] Entendemos três conceitos de
Barbárie, apresentados por Morin. Primeiro: A violência oriunda da ontologia
dialógica do Ser Humano, que é ao mesmo tempo Sapiens (sábio, racional) e
Demens (louco, delirante). “[...] as potencialidades, as virtualidades da
barbárie aparecerem em todos os traços característicos da nossa espécie
humana.” (MORIN, 2009, p. 14). Segundo: As barbáries que o socialismo procurou
eliminar, são elas: “as barbáries de dominação e de exploração” (Idem, 1997, p.
32). Terceiro: que é a união dos dois primeiros, acrescidos da técnica. “[...]
a ameaça mundial polimorfa que retoma e produz a aliança entre duas barbáries:
a barbárie de destruição e morte, que vem do fundo das eras, e a barbárie
anônima e fria do mundo técnico-econômico” (Idem, 2003, p. 72).
[28]Segundo Hegel: “Para dizer, ainda,
mais alguma coisa, sobre a pretensão de ensinar como deve ser o mundo,
lembramos que, em todo caso, a filosofia sempre vem muito tarde. Enquanto
pensamento do mundo, aparece apenas quando a realidade completou e terminou seu
processo de formação. O conceito ensina, a História o mostra com a mesma
necessidade: é na maturidade dos seres que o ideal aparece em face do real e,
após ter colhido o próprio mundo em sua substância, o reconstrói na forma de um
império de idéias. Quando a filosofia chega em sua luz crepuscular ao
anoitecer, uma manifestação da vida acaba de envelhecer. Não se pode
rejuvenescê-la com o cinza sobre o cinza, mas apenas conhecê-la. Ao cair das
sombras da noite é que alça vôo o pássaro de Minerva" (1997, p. 37).
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